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OS ÚLTÝMOS DÝAS DE MEU AVÔ *   
O ESPELHO *   

KIZ KULESI-Istanbul



           OS ÚLTÝMOS DÝAS DE MEU AVÔ

           Mustafa BALEL

 

Meu avô era bonito, podíamos até dizer que ele era muito bonito ! 

Um belo homem de aparência arredondada, terna e charmosa. Um jovem homem velho... Ele não se parecia com  esses velhos caducos, como os avós de meus companheiros, e dos garotos da rua, curvados, dobrados em dois, com um nariz grego parecido a uma pêra, pendendo pesada sobre o ramo, prestes a cair; as rugas ou melhor, os sulcos de seus pescoços cheios de sujidades de decênios e os olhos  enterrados em suas órbitas e sempre ramelosos. Ele não era do tipo que  deixava chamuscar o bigode pelo tabaco, se apressando  em mergulhar em sua sopa, nem como os que têm por habito espalhar sua saliva.   

Totalmente ao contrário, ele não gostava desses tipos repugnantes. Que tiram freqüentemente a dentadura, raspando com o dorso de um garfo e engolindo a sujeira no fim dessa operação... Ou mesmo que deixam cair sua dentadura em pleno público e provocar nojo. Essas lhe eram  atitudes incomuns. Em fim, mesmo que seus dentes fossem falsos, eu ignorei isso até o dia em que pude perceber durante uma conversa. Ele tinha dentes falsos até aqui eu não podia os distinguir em um pote de iogurte!... 

Ele não fazia parte dos velhos que se negligenciavam. De manhã, quando acordava, ele tomava uma ducha quente. Era já um hábito. Nem o frio, nem a doença -  a menos que ele estivesse doente a ponto de ficar acamado – podiam lhe impedir... Ele não saía jamais do banheiro sem antes se pentear – seus cabelos brancos, eram abundantes – e de cortar o bigode, com a ajuda de suas pequenas tesouras. Em seguida, ele passava sua camisa sobre a qual juntava um casaco trespassado. Colocava sua calça, instalava-se em seu banco de palha e se punha a ler o jornal. Depois de tomar o café da manhã, se fechava em no quarto para passar suas roupas, dobrar as meias, que ele tinha lavado nas vésperas, arrumar sua cama e seu quarto.  

Mais tarde ele saía e se ocupava do jardim. As árvores e as flores que ornavam nosso jardim eram obras de seu trabalho. Quando alguém chegava, ele trocava rápido sua calça e seus chinelos ordinários por aqueles de festa que estavam aos pés da cama, dava corda em seu relógio, e perfumava suas mãos com água de colônia. Vinha então até a sala, cumprimentava a visita com um respeitoso “seja bem vindo!”. Se instalava em seu banco e se colocava a escutar, com um doce sorriso nos lábios. Ele não falava jamais sem ser interrogado. Achava inconcebível  vir à uma reunião de família sem seu casaco. Cortar as unhas não importa onde, tirar os sapatos ou deixar as roupas sobre o assento; ficar dormindo em frente à TV, falar a toda hora de doença, dos males de seu estômago, de seus rins... Eram coisas que ele detestava. 

Portanto, suas relações com mamãe deixavam a desejar. Como dizia às vezes meu pai, seus gênios eram incompatíveis. Como se esse pobre velho homem tivesse morto seu bem amado, mamãe não o detestava. Ela não era nunca gentil com esse homem bom que não fazia nada para irritá-la, além do mais  ajudava-a. Não o tratava jamais como o pai de seu marido, nem como o avô de seus filhos que ele amava como sua própria prole, mais sim como um estrangeiro, refugiado na casa dela. Esse velho gentil, doce e amável, aos olhos de mamãe, se é que se pode dizer, não era mais que uma cadeira velha, quebrada, que ela não podia vender a um mercador de velharias, com medo de irritar papai... Ela não lhe falava nunca, nem mesmo olhava em seu rosto... 

A palavra papai era desconhecida para ela quando se tratava de seu sogro. Quando tinha qualquer coisa para lhe dizer, mamãe tinha o hábito de falar ao público, como se ela anunciasse uma ordem real. Arrume rápido o quarto ! Tire esses jornais de minha frente ! Os sapatos da criança – que sou eu – estão precisando de reparos, que se faça rápido, se não, neste calor esmagador do verão de Istambul, os novos sapatos se estragarão em dois dias !... Isso acontecia somente entre nós, é claro. Na presença dos outros, ela esquecia sua existência, ou se continha com um simples “Senhor Nihat”, depois de uma frase composta de algumas palavras insossas, secas e frias como por exemplo: 

“E o senhor ? Quer alguns senhor Nihat ?” Ela segurava o prato de biscoitos, ou mesmo o pote de cristal cheio de bombons recheados de amêndoas que  tinha escondido debaixo dos chocolates ou sob o frasco de água de colônia – mamãe amava esse frasco quase ordinário de gargalo estreito e com a base particularmente larga que ela tinha guardado e não utilizava outra coisa, quando ele estava vazio, ela me mandava encher, não sem antes fazer uma longa prece para que eu não o quebrasse – vendo meu avô colocar a mão sobre o peito, com um gentil “Obrigado, minha filha”, inclinando  a cabeça, eu engolia minha cólera. Isso me deixava tão nervoso que tinha vontade de arrancar o prato de suas mãos e quebrá-lo, ou mesmo quebrar o famoso frasco, e depois de tudo, bater na barriga da perna de minha mãe com meus pequenos pulsos, até que elas ficassem completamente roxas... Ou ainda, até que ela abandonasse esse comportamento inumano, e  adquirisse  o hábito de lhe dizer: “ E você papai ? Quer um ?”, e vê-la dar-lhe o prato.... 

Mas eu era incapaz de fazê-lo, pois tinha medo dela. Em efeito, se ele não se preocupasse tanto comigo, eu poderia fazê-lo sem qualquer medo, mas eu tinha medo por causa de meu avô. Se eu tivesse certeza que mamãe se contentaria simplesmente em me privar das refeições quentes, dando-me apenas uma fatia de pão depois de uma surra, me trancar dentro de um buraco escuro debaixo da escada, e deixar-me preso debaixo da escada não era a maior das minhas preocupações. Eu estava pronto para receber a surra até que minhas costas estivessem roxas, ou a ficar privado de ir ao cinema, aos bares nas praias, ou mesmo ao parque de diversões. Mamãe poderia me colocar trancado a chaves ou dar ao filho da vizinha meu paletó azul marinho que minha tia tinha trazido de uma viagem à Áustria, isso tudo não me faria sofrer, eu acreditava que minha mãe ia tomar meu avô como alvo, e seria ele que pagaria por tudo. Eu conhecia bem minha mãe. Ela interpretaria minha reação como uma provocação da parte de meu avô, e o acusaria de provocar uma criança – talvez quando eu me tornasse um jovem homem, em idade de casar – que não lhe chegasse nem mesmo aos ombros, eu a esganaria. Ela se metia a difamá-lo, não importa onde, nem em presença de quem.  

“Sim meus queridos, dizia ela, Deus nos deu um sofrimento sinistro que eu não desejo nem mesmo aos meus inimigos...” 

Vendo suas amigas a apoiá-la em suas questões, depois de sacudir o colarinho de seu robe roxo – ela preferia as cores de tom violeta – e tocar o com o indicador o carvalho da biblioteca, ela continuava: 

“Esse velhote, essa serpente fingida, transformou meu próprio filho em adversário obstinado, o filho que eu portei durante nove meses em minha barriga. Ele o toma pelo braço, leva-o ao campo, dizendo que é para brincar com uma pipa, ou para contemplar os pescadores na praia. Ele leva essa criança para enchê-la de raiva contra mim...” 

Ela diria o mesmo para meu pai. Mas com ele, ela não encontrava uma razão, ou mesmo um pretexto. Sempre esperava o momento propício para queixar-se de meu avô. E na maioria das vezes,  fazia-o no quarto antes de dormir. Depois que estivessem deitados, sua voz ressonante fazia-se ouvir por muito tempo. Jamais se ouvia papai, apenas raramente ele se pronunciava. Quer dizer, uma cólera lhe subia à cabeça. E nesse momento, eu tinha a impressão que o copo de água que se encontrava sobre o criado mudo ao lado de minha cama, tremia. Depois dessa tempestade, batia a porta com força. Então, sentava-se em frente à janela que dava para a varanda, até altas horas, e forçava um sorriso para que meu avô não percebesse o incidente... Suas brincadeiras artificiais, suas palhaçadas secas, não mudavam nada. A bomba estava pronta para explodir, o ar dominador e assustador de mamãe planava sobre nós. Além do mais, havia uma diferença entre a atitude de mamãe e de uma bomba explosiva. Podíamos olhar a bomba com medo, era-nos impossível de fazê-lo com mamãe. Éramos obrigados a dissimular o medo que ela nos dava, e fazer como se uma coisa dessas jamais se passava, e jogar o jogo como se nada acontecesse. Dissimulando a raiva, devíamos falar, brincar, sorrir e mesmo rir alto; a atmosfera habitual de nossa casa devia ser mantida a todo custo... 

Sem dúvida, não podíamos dizer que papai guardava eternamente o silêncio e que ele aceitava tudo que ela dizia. Raramente, podíamos escutar a voz de papai se elevar. De tempos em tempos, nervoso, ele se metia à gritar. Ele dizia à mamãe que essa atmosfera não podia continuar. Ele pedia para que ela esquecesse esse pobre velho, ou mesmo dizia que ia deixar  a casa. Mas eram apenas palavras ! Depois de tudo, nem mamãe, nem papai deixavam - queria  meu avô e eu – nem mudavam para uma outra casa, como ele falava sempre. Uma atmosfera glacial ficou em nossa casa por dois ou três dias. Um silêncio arrasador... Todo mundo estava frio, mudo... Passávamos de um cômodo para outro nesse silêncio de cemitério, nas pontas dos pés, evitando até respirar mais forte, sentindo o vento entrar pela janela entreaberta, o frescor desse vento aumentava mais a tensão que restava dentro de casa. Enjoados pelo odor desagradável do restaurante vizinho, sentíamo-nos quase doentes e deprimidos, pois apenas sentíamos esse odor nesses momentos. Durante as horas de leitura   tentávamos nem mesmo fazer barulho com as folhas... Dificilmente escutávamos os programas radiofônicos, pois baixávamos o volume do rádio... 

Depois de alguns dias, tudo tinha voltava ao normal. No fim de um período de 3 ou 4 dias, papai levava de novo sua almofada que ficava sobre o canapé da sala de estar, para seu quarto de dormir, vizinho daquele onde dormíamos eu e meu avô. Mamãe ficava jovial e contente. Uma vez, reencontrada essa jovialidade e essa alegria, ela deixava de bater as louças e de pisar forte sobre o assoalho, a tal ponto que tínhamos a impressão que se tratava de um ferreiro malhando o ferro. Isso significava que mamãe tinha de novo as rédeas nas mãos. Depois de escapar do caos, ela se sentia bruscamente leve e frívola como um pássaro, pois durante essa chateação, onde meu avô e eu nos esforçávamos de nada fazer para deixá-la nervosa, ou melhor, nós éramos nosso próprio carrasco, mamãe se sentia sem dúvidas, melhor que nós. Meu pai tinha uma personalidade estranha. Notadamente nos momentos de cólera – ele se irritava raramente, mas quando isso acontecia, ele ficava arrasado; e a causa dessa cólera era sempre o conflito entre mamãe e vovô – ele não queria mais nada. Ele quebrava tudo, como por exemplo, a jarra, o copo e mesmo os pratos de porcelana fina que mamãe guardava como as meninas de seus olhos.... 

Em efeito, mamãe não estava no ponto de aceitar facilmente. Ser menosprezada por seu marido, ter os livros sendo lançados pela casa, escutar a voz de papai se erguer... todas essas coisas a desanimava, ela se sentia infeliz e assediada. Em momentos iguais, ela se sentia como uma jovem recém-casada voltando para a casa dos pais, e se considerava desencorajada, perdida em sua auto-estima, como a filha da dona da mercearia que morava no andar térreo do prédio vizinho. Ela havia voltado para a casa de sua mãe no fim de um matrimônio de algumas semanas com um famoso adendo cultural, o grande orgulho da dona da mercearia, e tinha perdido sua estima aos olhos de todo mundo. Minha mãe considerava meu pai como o dólar americano que se valoriza todos os dias frente ao nosso dinheiro, e constatando sua própria desvalorização, se afligia fortemente. Ela esperava a ocasião, ensaiava de encontrar meios de voltar a ser a única a nos dominar. 

Isso não lhe era difícil, estava engajada para que uma outra demonstração de cólera pudesse inflamar papai como a um punhado de palha, faltava esperar que a saída fosse tentada de novo, e isso poderia levar quatro ou cinco meses. E esse tempo era suficientemente grande para que mamãe degustasse consideravelmente o prazer de ser a imperatriz da casa... Saía sobre o pretexto de visitar as amigas, fazer compras.... Ensaiava de não nos deixar na sala de estar com o pretexto ridículo que iríamos sujá-la, dizia ela, e que fazíamos desordem... Deixava sobre a mesa da cozinha uma grande travessa com tomates, pimentões verdes, uma fatia de queijo, alguns pedaços de carne defumada em condimentos,  de forma que ela soubesse se meu avô tivesse pego um bocado ou não – pois eu não comia essas coisas –  pequenas berinjelas recheadas de alho, e saía. 

O mais engraçado, era que sabíamos que  haviam essas berinjelas recheadas de alho e salpicadas de salsa dentro da travessa, assim, uma vez sentados na mesa, não podíamos deixar de abrir a tampa da travessa. E era eu quem abria mais vezes, esperando a cada vez encontrar algo diferente, mais particularmente charutos de folha de uva, recheados com arroz e pedaços de carne cozida. Pobre vovô !... Para que pudesse comer saborosamente, ele comprava manteiga de um pequeno vilarejo nas margens do Mar Negro. Mas porquê mamãe preparava todos os dias o arroz e o cozido com óleo de girassol, esse óleo viscoso ? Uma vez que a tampa era aberta, depois de ver essas berinjelas fritas, cheias de alho picados em finas fatias e cozidas no forno, todas minhas esperanças eram destruídas, eu me sentia desesperado. Eu ficava em um longo silêncio. Vermelho até as orelhas, fechava a tampa com um sentimento de culpa e colocava rápido dentro do local habitual na geladeira. É claro, que às vezes eu sucumbia ao desejo de jogar no lixo algumas dessas berinjelas nauseantes... Enquanto eu guardava a travessa, eu olhava o interior da geladeira com os cantos dos olhos, e rapidamente eu lhe falava os alimentos que achava comestíveis: 

“Você quer picadinho refogado ?”         

“Obrigado !” 

“E baklawa ? Você quer ? “ 

Os pimentões verdes fritos – ele não comia jamais, sem dúvida porque o molho contendo alho ou legumes fritos lhe fazia mal ao estômago, e eu não sabia – o doce de bergamota, o mel em fatias, as cavalinhas secas ao sol, o atum salgado, a sopa de tripas, etc... Ele recusava tudo com um gentil “obrigado”, com um gesto íntimo, colocando a mão sobre o peito. Vendo-me tomado pelo desejo de lhe oferecer qualquer coisa diferente daquela que mamãe tinha colocado sobre a mesa, ele me acariciava os cabelos com uma doce satisfação e se sentia forçado a aceitar ao menos um pequeno pote de iogurte, ou ao menos purê de batatas que mamãe havia preparado graças ao aparelho que ela tinha comprado no crediário em um supermercado. Depois de ter engolido, ele me fazia sentar à mesa redonda que se encontrava na varanda, e me bombardeava com várias questões sobre as lições já estudadas, até que o estudante que me preparava para a entrada no colégio chegasse. 

A propósito do dinheiro, apesar da avarice de meu pai – seria ele   verdadeiramente um mão de vaca, ou será que ele o era simplesmente aos olhos de mamãe ? – Mamãe era literalmente uma gastona. E isso não vinha de sua natureza, mas de seu hábito, pois ela era de uma família rica, que tinha se desprovido de várias domésticas, um velho cozinheiro, uma arrumadeira, uma lavadeira negra, um jardineiro, também negro e marido da lavadeira, e até um mordomo...  

E, às vezes ela contava, de tempos em tempos,  que  eram os carregadores que transportavam os cestos cheios de legumes, frutas e carne. Seu pai era um alto funcionário em não sei qual empresa.  Para imaginar a imensidão de suas posses, faltava citar ao menos quaisquer uns dos bens que seus filhos bêbados tinham dilapidado no jogo, apenas alguns dias antes de sua morte. E eis que nesse momento, melhor falando, seu irmão beberão tinha perdido o majestoso hotel com  um jardim imenso, cheio de pés de pistaches, uma vasta vinha em Thrace, a boutique parecida a um harém, bem ao lado da estação central de Sirkeci. Mamãe ignorava o preço de um quilo de tomates.  Uma vez que meu tio beberrão foi esmagado sob um trem e que minha avó tinha morrido de uma crise cardíaca, ela tinha que se acostumar em Taslitarla, na casa de uma tia, e depois dessa mudança obrigatória ela passou a compreender tudo, e, que seus pés tentavam atingir o sol.  

Ela  conhecera a riqueza, os bons ventos cessaram bruscamente. Ela aprendeu que não se dá um vestido recém comprado, nem à empregada, nem ao mordomo, sob o pretexto que os ombros estavam largos ou que o tamanho não era bom, mas a descosturar e a reformar, ou mesmo a fazer ela mesmo suas próprias vestimentas. Assim, ela pode aprender a não mais gastar, como antes, tudo o que ela tinha. As jóias que tinha conseguido salvar de seu irmão bêbado, os colares de pérolas, as medalhas, os broches, as pulseiras retorcidas, os brincos de diamante, os anéis de turquesa, os cintos de prata, tudo isso se fundia de um momento à outro. Como mamãe tinha vergonha de vendê-los – ela achava tudo isso humilhante – a mulher que ela dizia “tia” se encarregava de fazê-lo. Essa megera, essa tia adotada, levava um bracelete e voltava com uma sacola de comida com tudo que ela podia comprar. Para um belo bracelete de ouro, alguns quilos de alimentos para duas ou três semanas !  

Além do mais, os alimentos que ela colocava na mesa, não eram nem comestíveis. Todo dia o mesmo tipo de comida... Depois de se casar com papai, mamãe percebeu isso. O fato de ter comprado essa casa em frente de uma  ladeira escorregadia, à Bakirkoy,  seguindo os apelos de papai, com o dinheiro obtido da venda das últimas jóias... um colar em diamante, dois broches de jade e um par de brincos em esmeralda, lhe permitia ter consciência de ter sido roubada por essa falsa tia. Foi então que mamãe compreendeu que aquele que havia subtraído o porta cigarro em ouro de minha avó, os colares realçados de lágrimas de não sei qual sultana, as pulseiras em ouro feitas pelo melhor joalheiro de Istambul. De tempos em tempos se lembrava desse caso, e tinha uma grande aflição, mas o que estava feito, estava... Isso se passava sobretudo nos dias que meu pai a fazia entender que seu salário, bem como a pensão de aposentadoria de meu avô, era estritamente suficiente para que vivêssemos e não lhe permitia gastar para satisfazer os caprichos de mamãe, uma cadeira de balanço de bambu, os móveis que ela queria trocar, um açucareiro de cristal... Então, a raiva que ela tinha por essa megera chegava ao cúmulo e ela se punha a maldizer. 

Uma vez, terminado seu trabalho na emissora de rádio, papai pegava seu automóvel e ia rapidamente para Cagaloglu, o bairro onde se encontravam as editoras, a fim de enviar os textos que ele havia corrigido durante a noite e para pegar outros. Ele não passava quase nenhuma noite sem trabalhar. Depois do jantar, e mesmo durante , corrigia-os até altas horas. E de manhã, ao acordar,  colocava tudo dentro de sua pasta e ia rápido entregar à impressão, antes de chegar ao escritório. Por isso, era raro que recebêssemos visitas, quase nulo, sobretudo nas tardes. Raramente, se um de seus amigos vinham vê-lo, com o objetivo de um trabalho que não fosse possível explicar ao telefone, papai o recebia em seu escritório. Seu discurso era líquido e seu convidado, depois de beber uma tônica ou um pequeno copo de licor de framboesa – fruta favorita de mamãe – iam embora rápido. E às vezes, podíamos  encontrá-lo no jardim, cheio de gargantas-de-lobo e primaveras, sem que a pobre mamãe tivesse tempo necessário de fazê-lo apreciar seu doce favorito. Uma vez  seus grandes esforços acabados, pobre mamãe, decepcionada, enterrava dentro das profundidades de seu coração, o desejo de contar como tinha limpado as bergamotas colhidas em um jardim à borda do Dardanelo, como preparava esse doce de acordo com a receita de um famoso cozinheiro nos tempos de riqueza de seu pai. Não encontrava tempo nem mesmo para dizer que por esses dias, por causa do uso de adubos químico, as bergamotas tinham perdido o gosto natural. 

As amigas de mamãe chegavam na maioria das vezes durante o dia, mais precisamente depois do almoço, no chá das cinco. Mamãe que trabalhava como tradutora em uma empresa, não se encontrava habitualmente em casa a não ser nessas horas. Mas quando ela estava prevenida por suas amigas, entrava cedo, ou nem mesmo ia trabalhar, depois de ter telefonado ao seu chefe, sob o pretexto de estar doente – mais vezes que eu ou meu avô – ela obtinha dois ou três dias de folga, bem como os votos de restabelecimento de seu chefe. 

Além do mais, sabíamos que ela não ganhava muito, mesmo porque, não esperávamos nada dela. Estávamos habituados a vê-la gastar tudo que ganhava em suas necessidades pessoais. Sem se contentar com o dinheiro que ela ganhava todo mês, ela queria que os outros a consolasse,  ela sabia bem que o salário de papai não era suficiente  para comer e portanto  tinha que juntar a quantia suplementar que ele ganhava nas correções que lhe custavam o sono e o descanso, e a pensão trimestral de meu avô. Insistia em não acreditar que não ganhávamos o suficiente para comer e para o combustível do automóvel, bem como para sua manutenção e pagamento de taxas. Em efeito, ela não pedia nada, mas constatávamos que ela esperava que papai lhe desse uma quantia considerável e lhe dissesse baixinho:  

“Tome, não é muito, mas enfim, servirá ao menos para suas necessidades diárias...” 

Papai estava todo dia duro. E às vezes bastante duro. Vamos supor que se ao retorno do trabalho ele tivesse  utilizado o carro como um táxi coletivo, ou que ele tivesse levado qualquer pessoa ao aéroporto por um pouco de dinheiro, ele lhe contava, e, por consequência, mamãe multiplicava essa volta por trinta, como se ele fizesse isso todo dia, juntava com a soma habitual, em seu espírito estéril, esperando aquilo que papai dizia “dinheiro de bolso”. E quando isso não acontecia, ela ficava nervosa, pronta para procurar briga por qualquer ocasião. Então, papai, desatava a querela, de medo que seu sensível pai não pensasse que era ele o sujeito dessa discussão, e tentava terminar logo com isso. 

Além do mais, mamãe já tinha encontrado o meio de obter o dinheiro que lhe faltava... Cada vez que ela fazia compras, ela mostrava uma nota mais alta a papai. E isso significava que sempre tinha uma soma de lado. 

Mamãe não gostava de desordem, mas uma desordem perpétua dominava nossa casa. E às vezes, era seu próprio trabalho que estava esparramado por tudo... Ela não tinha o hábito de colocar no lugar as coisas que pegava, depois  se queixava da desordem. Eu não compreendia jamais essa contradição: deixar esparramado tudo o que tocava e depois se queixar da desordem !... Chegava a colocar ao mesmo tempo e no mesmo lugar um tecido, uma meia, um pote de geléia, e suas pantufas sobre uma poltrona ou mesmo em uma estante da biblioteca, depois de saber que uma de suas amigas viria em nossa casa. Por conseqüência, lhe era impossível  encontrar aquilo que procurava. E mesmo não conseguia às vezes deixar no armário de roupas um cinto que eu tinha encontrado no refrigerador ou mesmo um saiote que eu tinha encontrado dentro de minha bolsa. Eu tinha muitas vezes temor que nosso avô, tivesse recolhido as travessas  e as formas na cozinha e as tinha arrumado no seu lugar. Meu avô não era muito falador, ele não tinha o hábito de criticar qualquer um na sua ausência, mas, era ele que colocava em ordem as coisas  em nossa casa. Era nos impossível vê-lo desocupado. Ele encontrava sempre qualquer coisa para fazer. Limpar os cinzeiros, guardar os jornais e as revistas não importa onde... Arrumar a toalha redonda que estava eternamente no meio da sala de visitas – e o que era sagrado, era que a toalha sempre escorregava !... Era-lhe impossível   deixar de fazer suas tarefas. 

À tarde, antes de se deitar, ele nunca deixava  suas roupas sobre uma cadeira, tão pouco as deixava sobre seu leito. Eu que dividia o mesmo quarto com ele, jamais tinha testemunhado qualquer desordem... 

Depois da morte de minha avó, meu avô ficou só em uma pequena cidade da Anatólia, com  medo de mamãe, não tinha trazido tudo que possuía, pois mamãe tinha falado muitas vezes a papai que lhe escrevesse e o advertisse a propósito dos objetos que ele deveria trazer, pois nossa casa era pequena para conter os móveis de uma segunda família. É por isso que vovô deveria fazer uma seleção minuciosa, vender aquilo que quisesse e se desfazer dos objetos que não valiam nada. Mas eu não acreditava que papai lhe havia escrito essa carta, assemelhando-se a um “firman” otomano, pois papai não tinha a arrogância de redigir uma só carta a seu sensível pai, com a crença que esse velho homem ficasse infeliz e renunciasse de se juntar a nós. Por outro lado, quando nós estávamos na sala de espera da grande estação central, com  duas valises na mão,  foi mamãe que se fez mais surpresa. Quando o automóvel cor pistache de papai tomou nossa rua cercada de acácias, de ameixeiras pretas e gigantescas castanheiras, papai aproveitou a distração de mamãe absorvida pela leitura de uma revista inglesa e teve a coragem de perguntar a seu pai, em voz baixa, se ele tinha depositado as bagagens no depósito da estação e se tinha pedido um recibo. Foi então que  meu avô replicou com um de seus famosos sorrisos: 

“De qual bagagem você fala, Suavi ? Eu não tenho nada além dessas bagagens, essas duas valises que estão dentro do porta-malas do automóvel...” 

“Em sua pequena valise, ele tinha suas roupas, suas famosas meias feitas à mão, um cinto de lã, seu roupão de seda bordô, suas camisas, suas pantufas, seu paletó de domingo que estava sempre novo como se fosse recentemente costurado. E, na grande mala, não mais que alguns pratos decorados, acomodados pela utilização, escolhidos entre todos os outros que ele havia dado aos vizinhos. Em verdade, eu não achava que meu avô acreditasse que íamos nos servir dessas coisas em cobre sobre as quais se encontravam ornamentos e inscrições gravadas em não sei qual língua. Mamãe não colocaria essas coisas entre os móveis bem modernos que ornavam nossa sala de estar. Era incrível ! Meu avô, um sogro que conhecia sua nora depois de quatorze anos, devia saber disso. E ele sabia, eu tinha certeza. Então porquê pensava  ele que mamãe utilizaria essas coisas para decoração ? Esconder a vergonha de trazer essas coisas sem valor para mamãe que não o amava ? Ou o esforço de ganhar seu coração, por uma palavra doce ? 

Em efeito, ele não tinha necessidade de se esforçar para ganhar o coração de mamãe. Normalmente os presentes que ele tinha enviado durante anos, deviam ser suficientes para seduzí-la. Nenhuma festa, nenhum aniversário de casamento não se passava sem que ele enviasse um presente. Em todas as ocasiões, mamãe recebia ao menos um pacote contento um lenço de seda pura, um par de brincos, alguns metros de tecido para um vestido, acompanhado de votos de dias felizes e pedindo que humildemente aceitasse esses presentes... Assim mesmo, quando acordava  de manhã, partia rápido, sem mesmo tomar seu café, para ficar na fila que se formava em frente ao banco, onde  esperava com grande impaciência até tarde para receber sua aposentadoria, e, muitas vezes  tinha que esperar até quase o fechamento do banco.  

Sem mesmo abrir o envelope, ele dava essa soma ao meu pai. Papai lhe devolvia algumas notas para suas despesas pessoais. O pobre avô, depois de reservar uma soma para seus gastos pessoais inevitáveis, como por exemplo a graxa para seus sapatos, a soma necessária para comprar sachês de chá que ele habitualmente tomava após cada refeição e  o dinheiro para ir a Kurucesmé, visitar Serafattin Efendi, seu amigo querido, com o resto de seu dinheiro de bolso, ele não esquecia jamais de oferecer pequenos presentes à mamãe e às crianças. Era ele quem comprava o material de escola para mim... E por que ele tinha dito isso ? Qual a necessidade que ele tinha de dizer à mamãe que  tinha trazido essas coisas para que utilizasse como acessórios decorativos ? Essa questão me acompanhava por anos.  

Tanto faz se meus esforços para sondar meu avô sobre isso, eram suficientes ! Ele era muito discreto, e meus esforços não serviam para nada. 

Era por isso, como se todo o segredo estivesse escondido nessas coisas que mamãe tinha instalado ao lado da cozinha, sobre a pia, e também no sótão, onde eu subia várias ocasiões e encontrava essas coisas, examinava-as durante minutos e tentava adivinhar as inscrições que estavam gravadas. Nosso sótão era bem estreito. Papai, depois de comprar essa casa, demoliu o segundo andar que estava em ruínas, e fez o telhado ao nível do primeiro andar. Uma das clarabóias que clareava o sótão, dava sobre o jardim e era recoberta de glicínia que chamava a tenção dos passantes pela vivacidade de suas cores e a beleza de suas flores.  

Muitas pessoas paravam ao pé do muro do jardim para admirar e mesmo  alguém vinha à nossa porta para perguntar à respeito dessa planta, ou pedir uma muda. A parte disso, apenas uma fraca luz violeta púrpura pelo buraco verde que saía sobre o vermelho, nenhum raio de luz podia se infiltrar. A fraca luz que chegava a duras penas ao sótão, não penetrava além da pequena janela da frente. Era por isso que mamãe depositava móveis e objetos supérfluos e mesmo alguns sacos cheios de sabão ou de açúcar que papai comprava nos raros momentos que ele ganhava seus salários complementares.  

Eu os examinava, tocava e olhava por diversas vezes e depois descia pela escada que fazia ruídos a cada passo, sem nada compreender... Algumas vezes tinha visto meu avô no sótão. Ele tentava, como eu, adivinhar os segredos das imagens gravadas sobre o cobre, ou mesmo saber se tudo estava lá. Cada vez que o encontrava no sótão, desculpava-se que tinha subido para pegar um pedaço de sabão, encher as vasilhas de arroz, em seguida descia rápido. Para evitar que as coisas se estragassem, nós  guardávamos no sótão o excedente das provisões. Assim, ele sempre encontrava um pretexto para suas visitas furtivas, eu estava certo que ele subia simplesmente para admirar suas coisas, as acariciar como uma criança. Eu tinha certeza, eu o tinha visto !... 

Durante um fim de semana, papai e mamãe tinham partido para fazer uma visita a um amigo recentemente saído da prisão. – um dos amigos escritores de papai tinha sido condenado a dois anos de prisão por causa de um artigo literário que ele tinha publicado em um jornal – e eu, estava perdido entre os livros, quando bruscamente, percebi que meu avô que estava sempre ao meu lado e absorto em sua leitura, tinha desaparecido. Olhando ao redor, para  fazer-lhe uma pergunta à propósito da palavra inglesa “Liberty” que me obcecava toda a manhã, escutei uma pessoa andar pelo forro. Subi devagarzinho a escada, tão silencioso quanto uma sombra, e vi quando meus olhos se acostumaram à escuridão que reinava no sótão, atrás da janela recoberta de folhas de glicínia, com uma de suas coisas aos braços, a balançá-la como uma jovem mãe balança seu bebê... Esse testemunho também confirmava que ele ia ao sótão, não apenas para procurar um martelo, uma chave, mas por seus cobres. Ao voltar sem fazer barulho, retornei aos livros. Mas era inútil... Não compreendia nem mesmo uma palavra da leitura. Uma curiosidade louca me enchia e me queimava de vontade!... Essa vontade de saber me obcecava a cabeça a ponto que se eu não pudesse desvendar esse mistério morreria de curiosidade. Que pena ! Apesar de meus esforços, não conseguia descobrir a relação entre meu avô e seus cobres.  

Nos últimos dias as visitas ao sótão estavam cada vez mais freqüentes. Ignorávamos, assim dizendo, um ao outro, em nossas visitas habituais. Eu não sabia se ele estava ao curso de minhas visitas, mas, pessoalmente eu não ignorava as suas. Assim que ele subia o último degrau da escada, eu ia atrás para saber o que ele fazia, sem mencionar os momentos onde o via acariciar um objeto nos braços, eu não conseguia compreender. E mesmo algumas vezes, para saber se ele tinha escondido dentro, peças de ouro ou um mapa do tesouro, eu tinha minuciosamente vasculhado. Assim, quando nossas visitas vinham a ser cada vez mais freqüentes e que os pratos caíam por vezes no chão do forro de madeira, nós chamávamos a atenção de mamãe. Observando que eu subia com freqüência, ela pensava que eu realizava minhas experiências de química e estivesse tentado fazer qualquer loucura. 

Vendo que não era por causa das experiências químicas, de medo que eu tivesse um problema psicológico, (ela consultou um psicólogo) –  o que constatei pelas conversas telefônicas e pelos cochichos que se passavam entre papai e mamãe – ela colocou um cadeado na porta do sótão. Quer dizer, por causa de minha doença psicológica, era assim que mamãe se expressava, era meu avô que levava a culpa. Sentia-me infeliz com a idéia de que eu o tinha impedido de ver seus objetos. De tempos em tempos, a idéia de roubar a chave do sótão e dá-la para meu avô, parecia-me um ato como o de oferecer a um doente sedento um copo de refrigerante. Mas como fazê-lo ? Para mim, não era difícil roubar a chave que se encontrava no pequeno tamanco holandês. Mas o que diria a meu avô ? Isso era difícil ! O pobre velho ignorava que eu sabia de seu segredo... 

Como nossas visitas ao sótão foram proibidas, ao retornar da escola, depois de ter preparado minhas lições e realizado meus passeios habituais na praia em companhia do meu avô e depois de beber nosso chá quente – muitas vezes, se o clima estivesse favorável, eu preferia um sorvete de framboesa –  voltávamos pra casa para ler na varanda. Lá, durante nossas leituras, escutávamos os trens  que não estavam longe, consultávamos rapidamente nosso relógios. Meu Deus ! Nós conhecíamos bem os horários de trem  da periferia ! Os trens que levavam os trabalhadores para as fábricas... Aqueles que transportavam milhares de pessoas às praias... Eu não sabia porque, mas nossas visitas à via férrea sempre acabavam no momento onde uma multidão composta de gente engravatada, com os colarinhos brancos e com pastas nas mãos chegava. O trem das seis horas e dez... Quando meu avô via esse trem, uma grande emoção tomava-o ! Vendo os passageiros saindo do tumulto do trem,  dirigirem-se para as grandes escadas da estação, onde se encontravam os restaurantes, ele colocava rapidamente seu paletó, como se tivesse chegado com o trem, soltava a gravata e se metia a beber em pequenos goles seu chá e colocava-se a ler.  

              Eu também, ao lado dele, preparava minhas lições ou lia os romances emprestados dos amigos. Assim, tínhamos a possibilidade de impedir os garotos que tentavam pular o muro baixo recoberto de hera, separando nosso jardim da grande construção vizinha e dos ladrões. Os garotos tinham pego gosto pelas frutas da pereira plantada pelo meu avô. As pequeans cabeças redondas desapareciam  assim que nós a notávamos. E nesse momento, quando eu me ocupava, na varanda, dos pedregulhos coloridos – que eu havia trazido durante o retorno de uma de minhas férias ao mediterrâneo e que tinha polido – quando  passava a língua molhada sobre eles, tornavam-se brilhantes como pedras preciosas, jade, diamante, esmeralda, tuquesa, ametista... – meu avô no jardim, arrancava as ervas daninhas dos canteiros que estavam cobertos de maravilhosas flores. E ele murmurava docemente velhas canções de velhos compositores como Hafiz Burhan, Celal Guzelses, Sukru Tunar... Quando  via um pássaro diferente, seja sobre os roseirais que enfeitavam nosso jardim, seja sobre as castanheiras  que se elevavam do outro lado da rua, ele gritava com grande emoção:  

             “Eh, pequeno homem ! Venha rápido, você quer ver um melro !...”

             Fazendo de forma a  evitar que  o pequeno pássaro comprendesse que falávamos dele, ele tirava a atenção do jovem, com um doce sussurro. Esse “pequeno homem” era uma expressão que ele usava às vezes para me chamar... 

             Era agradável repousar na varanda, mas as cadeiras não eram muito confortáveis. Mamãe queria trocar tudo, eu não sabia por que, nem pensava nunca em renovar essas duras cadeiras em maderia, onde os assentos nos obrigava a sentar como espantalhos, com o corpo duro. Em efeito, era certo que ela não estava contente de possuir essas velhas cadeiras antiquadas e de não poder desfrutar do prazer de apreciar nosso jardim – era, talvez, pequeno, mas muito bonito; de outra forma, era verdadeiramente um privilégio de ter um jardim em Istambul, sobretudo à Bkirkoy, o lugar onde as massas de concoreto dominavam tudo – mas como ela queria aumentar a varanda suprimindo as duas colunas de mármore, reformando a varanda, colocando uma grande mesa e cadeiras de ferro forjado, bem como uma cadeira de balanço... E para fazer tudo isso, era necessário uma quantidade respeitável de dinheiro, essas cadeiras desconfortáveis restavam lá. Eu repetia todas as ocasiões que gostaria de ter poltronas de plástico de assento estofados e mais confortáveis para ficar mais tempo sentado, e, além do mais, mais agradáveis de se ver. Mas ela não entendia.  

               Um belo dia, tínhamos ido, com meu avô, à Kurucesmé, para visitar um amigo seu, Serafettin Efendi. 

             Meu avô falava tanto de seu amigo e sobretudo de seu jardim, que uma curiosidade ardente havia tomado conta de mim, esse jardim lembrava a um daqueles das Mil e Uma Noites, que ornamentava meus sonhos. Quando essa pequena casa no meio de um grande jardim, encostada em uma colina às margens do Bósforo me vinha ao espírito, eu explodia de curiosidade. Assim, era-me impossível de dizer ao meu avô. E se eu me lembrava bem, eu tinha insinuado uma ou duas vezes, mas ele tinha fingido, não sei porquê, de não entender. Constatando sua indiferença à respeito de minha curiosidade, eu estava decepcionado e caído em um aborrecimento secreto... A idéia de que ele tinha qualquer coisa para esconder de mim, causava uma certa raiva dele. 

            Felizmente, nesse dia, ele pensou em me levar com ele, e me tomando pela mão,  me levou... O trem do subúrbio, o ônibus, a baldeação de ônibus... Após uma série de sobe e desce e de caminhadas, lá estava eu na casa do amigo de olhos agradáveis de meu avô, velho professor de literatura aposentado !.... O imenso jardim que abrigava os pés de pistache, os pés de mexericas, as pereiras com os frutos redondos, ornadas de  traços brancos... Uma pequena casa rústica, perdida entre as folhagens. Com uma pequena bacia em mármore em frente, ao lado da qual um pé de magnólias gigantesco se elevava... Pequenos biscoitos de gergelim que eu simplesmente admirei, sem mesmo provar um bocado, a fim de não perder o gosto saboroso do chá preparado em um samovar à carvão... O grande  tumor de Serafettin Efendi, um grande bócio que se movia a cada palavra...   Passeios nesse imenso jardim onde o canto dos pássaros soava... As corridas sob as árvores... Os galhos carregados de frutas das quais eu nem mesmo sabia os nomes... Eu não conseguia nem mesmo decidir sobre qual eu treparia... A música triste que saía dos alto-falantes de uma loja de música, refugiada no sub-solo de um grande prédio de dez andares, ou mesmo mais.. As plantas do velho amigo do meu avô, o propósito da alteração da natureza, causada por esse urbanismo desordenado. Eu escutava melhor suas recriminações quando a música diminuia ou mesmo quando ele elevava sua vóz a esse respeito. Um garoto de minha idade chamou-me ao redor para que eu não me sentisse só... As besteiras desse garoto idiota, de cabeça grande que me fixava com seus olhos à flôr da caberça; suas perguntas absurdas às quais eu deveira responder... Passeios às margens do Bósforo. 

          Durante o retorno, como havíamos perdido muito tempo diante das vitrines das livrarias, ou por causa dos engarrafamentos, já se fazia bem tarde.  Mamãe retirava a mesa da varanda. Ela retirava os pratos cheios de espinhas de peixe. Como meu avô tinha colocado uma lâmpada nova no lugar da velha que estava queimada, a nova estava muito forte – pois era muito difícil de encontrar uma de seu gosto, por causa da crise monetária – a varanda estava bem iluminada. Assim, forçosamente entrando pela porta do jardim, toda a varanda foi exibida diante de nossos olhos. Na pequena entrada do jardim, depois de ter feito quaisquer passos, um mancha vermelha quase alaranjada, bem no local onde meu pai tinha sentado para fumar seu cachinbo, me saltou aos olhos. Por um momento, sem nada compreender, eu olhava de boca aberta. Assim, quando mamãe voltou da cozinha, retirando a cobertura de algodão feita de crochê, a segunda marca vermelha apareceu ! Constatando que eram as poltronas que eu sonhava depois de quase três anos, tomado de felicidade, eu me sentei como um velho boneco, ou uma jovem mulher grávida que tinha a chance de encontrar um lugar em um trem de subúrbio ou um ônibus super-lotado... Papai enchia seu cachimbo e acendia com seu isqueiro bem antes de mergulhar na papelada à corrigir, e me vendo muito contente sobre a poltrona nova, ou mesmo bobo de alegria, me sorria sob seus óculos e cochichava:  

             “Hoje você deu uma bela escapada, hein !...” 

             Depois de ter pronunciado essas palavras, fazendo alusão à nossa ausência durante todo a jornada, ele se voltava ao trabalho de correção. 

          Eu esperava que ele levantasse sua cabeça e que me sorrisse, que ele me acariciasse a cabeça desalinhando meus cabelos. Mas ele não fazia nada. Ele não tinha tempo de pensar em me perguntar qualquer coisa... Uma angústia indescritível tomava conta de mim, de um momento para o outro, dentro dessa espera inútil. E eu percorria com um olhar distraído, meu pai. Mas o pobre  não estava jamais em estado de tirar seus olhos fixos sobre as folhas a corrigir, e de me ver observá-lo, e de me perguntar a propósito de meus olhares frustados. Perdido em seu mundo, por assim dizer, ele tinha cortado todos as ligações com o mundo exterior. O cheiro forte do tabaco de seu cachimbo, a papelada sobre as quais, lápis vermelhos, verdes ou laranja tinham deixado suas marcas... Seu semblante pálido e quase insensível, perdido atrás de seus grossos óculos, ele trabalhava ignorando minha presença. Alguns suspiros raros, o odor inundante do tabaco, o barulho das folhas corrigidas, colocadas umas sobre as  outras. A indiferença de papai tinha destruído toda a minha felicidade. E acima de tudo, seu ar orgulhoso dos homens importantes, me entristecia bastante, e dentro desse estado de alma eu já tinha esquecido a emoção causada pelas poltronas alaranjadas. Certo que ficamos ausente durante todo o dia, papai não me perguntava onde estivéramos, o que havíamos feito durante todo esse tempo ? Essa indiferença, durou até que mamãe chegando da cozinha me disse que nosso jantar estava pronto, sobre a pequena mesa da cozinha. 

              Após esse aviso de mamãe, acariciando meus cabelos, ele disse: 

            “-Vá ! Não faz o seu avô esperar...” 

           Eu não tinha vontade de comer  – as frutas e sobretudo os pequenos biscoitos de gergelin que eu tinha beliscado depois do almoço, tinham me tirado a fome – come eu sabia que o pobre velho não comia sem mim, eu engoli tudo o que ele colocou em meu prato. Era-me um pouco difícil, depois de tudo, comer a salada, a sopa, as folhas de uva recheadas e uma tigela de doce, mas eu suportava, pois meu avô era digno de toda sorte de devoção. O pobre velho, esquecendo seus próprios problemas – o reumatismo que lhe deformava, o acesso de tosse que lhe fazia esbugalhar os olhos – respirando com dificuldade, me perguntava o que me afligia, se eu tinha dor em qualquer parte. E ele não me deixava sem que fosse convencido de que eu não tinha nada de importante.   

            Essa noite, eu passei em claro, angustiado pela indiferença de papai frente à minha alegria. Como mamãe tinha o hábito de ser indiferente sobre tudo e sobre todos, sua atitude não significava nada, mas a indiferença de papai tinha-me magoado totalmente. O sono tornava minhas páupebras pesadas e me dava dor de cabeça. A fim de acabar com esse mal, esforçava-me a dormir, mas eu não conseguia. Mesmo que eu adomercesse, todos os dias a mesma angústia, o mesmo pesadelo ! E eu acordava à toda hora... Mas nada mudava. Pois o pesadelo durava mesmo quando eu estava acordado. Toda a noite, eu lutava contra os canibais e os dragões que sopravam fogo pelo nariz. E, toda vez, era meu avô que me salvava da boca dos dragôes ou das caldeiras negras, plenas de água quente, cercadas de negros portando colares de ossos humanos, enquanto papai e mamãe se repousavam em suas redes, instaladas sob as sombras das árvores tropicais... 

            Era provável que meu avô também não conseguisse dormir; eu, às vezes, entendia-o rolar na cama. E de tempos em tempos, falar consigo mesmo e chorar baixinho... 

            Na manhã dessa noite de pesadelos,  tomávamos nosso café da manhã na varanda, esquecendo todo o nosso cansaço e a angústia da noite, sentindo-me leve como um pássaro. 

           Os cafés da manhã que eu tomava com minha família estavam chegando ao fim. Logo as férias acabariam e eu recomeçaria à tomar o caminho da escola, bem cedinho, minha bolsa numa mão e um pacote contendo duas fatias de pão ou um sanduíche de carne defumada na outra. Como eu tinha ajudado à colocar a mesa, esta já estava pronta. Quando mamãe preparava os ovos, eu pegava o prato de salame com pistaches. E meu avô cortava o pão. E então, a mesa estava posta !... Depois de ter tomado algums goles de chá, eu estava pronto para comer o meu ovo, quando os recepientes de cobre de meu avô vieram-me ao espírito. Essa idéia brusca tinha-me cortado o apetite e eu não podia comer mais nada. Por outro lado, o que era estranho, era que essa poltrona em plástico tinha tomada um ar de fogão à carvão e parecia-me que estava sentado sobre carvão ardente... E esse calor aumentava de um momento à outro. Esse calor, essa angústia, essas agulhas imaginárias me espetavam... Um suor abundante. Um suor que tinha me encharcado até os ossos. A fim de que mamãe ou papai não percebessem que eu estava encharcado de suor, eu me esforçava de não lhes chamar a atenção. Nenhum movimento que podia fazê-los me notar. 

             Por quanto tempo isso me tomou, não me lembro. Mas saindo devagarinho, subitamente dirigi-me para as escadas do sótão... Os degraus em madeira quase arruinados começaram a gemer.... Os cliques da chave que mamãe tinha esquecido na fechadura... A obscuridade infinita do sótão, depois da claridade ofuscante da varanda sob o sol brilhante... Meus olhos se habituaram pouco a pouco à obscuridade e eu começo a distinguir o ambiente. Sim, mas !... Eu procurei com os olhos os cobres que meu avô guardava cuidadosamente. Eu corri rápido e me pus a procurá-los tateando. Procurei por tudo... Na caixa de embalagem da televisão, na qual mamãe guardava os recepientes em porcelana fina, presenteadas pelos amigos por ocasião da cerimônia de minha circuncisão... A caixa de ferramentas... e procurei mesmo na mala onde se encontravam roupas usadas... Mas os pratos planos e os vasos gravados com incrições não estavam mais. Nem mesmo um pequeno traço desses cobres que meu pobre avô tinha trazido de Sivas e que ele ficava  contente de  tocar, de acariciar como uma criança. O medo que tinha me invadido nesse momento, se transformou em um pânico assustador. O pânico de uma ligação entre esses objetos em cobre e as poltronas em plástico instaladas na varanda ontem à tarde !... 

             Bruscamente me senti em um vazio infinito e para não cair, coloquei-me depressa contra a viga do sótão. Ignorei quanto tempo fiquei por lá, mas quando  desci, depois de me recuperar, vi meu avô a ler seu jornal na mesa coberta com a toalha trabalhada em crochê. Isso significava que o café da manhã tinha terminado e que a mesa tinha sido retirada.  

            Quando ele escutou meus passos, levantou a cabeça e começou a sorrir docemente. Um sorriso onde podíamos ler sua amargura, a dor e qualquer coisa vaga. Era esse verdadeiramente um sorriso ? ... 

            Vendo que não me sentei sobre as poltronas, mas sim sobre o peitoril da varanda onde as grades de ferro estavam instaladas, ele me olhava com inquietude e me tomando pelo braço, me fez sentar sobre uma das poltronas que mamãe comprou com o dinheiro proveniente da venda dos cobres de meu avô. 

            Os minutos que eu tinha passado, os minutos que me pareciam infinitos... Eu me esforçava para evitar seus olhos a fim de que não compreendesse a situação.Como se fosse eu que tivesse vendido seus cobres para um comerciante de bugigangas e comprado essas coisas alaranjadas com o montante, me sentia culpado na frente dele. No momento quando eu procurava um pretexto para me afastar ele propunha ir à borda do mar.  

             Saímos. Passeamos por muito tempo na orla marítma. Tomamos um chá em um café rústico, olhamos, ou sobretudo, admiramos o mar prateado e brilhante sob o sol do outono. Olhamos os pescadores de vara, sentados sobre o parapeito que separava a calçada do mar... Conversámos, meu avô e eu. Conversávamos com os pescadores. Depois passeávamos pelas ruas. Olhávamos as vitrines das lojas.... 

             Mesmo que eu não nada tivesse dito à respeito de seus cobres, meu avô, como se estivesse por dentro de tudo e que soubesse que ele não poderia mais receber seus pertences que portavam os traços de décadas ou quem sabe dos séculos, tinha o sorriso desaparecido dos lábios... 

              E depois desse dia, eu nunca mais vi meu avô se sentar sobre essas poltronas. Nem eu... 

            E, eu olhava com estupefação, os raros visitantes que tomavam seus  lugares. Pareciam-me que eram braseiros nos quais se encontravam as brasas, e eu pegaria fogo se pensasse em me sentar. Por outro lado, eu tinha a impressão que com essas poltronas, meu avô estava mais degenerado, mais acabado e que ele não teria mais prazer na vida. E vendo-o assim perdido em seu canto, eu tinha a morte dentro da alma. O torpor me angustiava a cada dia.... 


Traduzido por Celso ROCHA

 

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